OUTRAS ESCRITAS

Somos ignorantes, somos néscios, somos Brasil.

“Bolsonaro mente na TV sobre vacina enquanto capitais como Curitiba já vivem colapso da terceira onda”. O título é do espanhol El País, edição de 2 de junho, em referência ao pronunciamento de Jair Bolsonaro em rede nacional, naquela data, anunciando a Copa América no Brasil e 100 milhões de doses de vacinas distribuídas.

Disse o mandatário que o Brasil é o quarto país que mais vacina no planeta. No vídeo ufanista não há menção a dado da Universidade de Oxford, que diz ser o Brasil 77º país em número de vacinados proporcionalmente ao número de habitantes[1].

O governo Bolsonaro foi ágil em aceitar a Copa América rejeitada por Colômbia e Argentina, agilidade inexistente em providenciar vacinas oferecidas ainda em 2020. O Brasil não imunizou com duas doses nem 10% de sua população[2]. De acordo com o repórter André Barrocal, de Carta Capital, estudo do epidemiologista Pedro Hallal, ex-reitor da Universidade de Pelotas (RS), revela que se o governo brasileiro tivesse aceitado propostas de aquisição de vacina da Pfizer e Butantã em 2020, hoje 90 mil dos 450 mil mortos estariam vivos[3].

No período de sete dias encerrado em 3 de junho, o mundo contabilizou 84.206 óbitos, dos quais 13.168 mortos no Brasil, 15,6% do total  [4]

Bolsonaro comemora projeção de mercado para o PIB em 2021. Se efetivada, nem ao menos fará o país recuperar a perda do ano anterior. Fala na criação de empregos formais, sem mencionar que, dos 100 milhões de cidadãos da força de trabalho no país, mais de 30 milhões são rotulados pelo IBGE como subutilizados, aí incluídos 14,8 milhões desempregados, 6 milhões desalentados – aqueles que nem emprego buscam mais – e o restante na base do bico, sacola nos trens e balas ancoradas nos retrovisores enquanto os semáforos estão fechados. Aos que carregam cartazes improvisados em caixas de papelão anunciando sua fome, apelem ao Padre Júlio Lancelotti.

O país protestou no sábado 29 de maio. Milhares foram às ruas com máscaras e álcool em gel. Aglomerações foram inevitáveis, lamentavelmente, mas quem protestou disse que Bolsonaro é mais letal que o vírus. E, afinal, são os que se aglomeram em ônibus, trens e metrôs em busca da refeição do dia, não bancada por auxílio miserável temporário de R$ 150 – e para alguns poucos.

O “mais letal que o vírus” foi o destaque do jornal francês Le Monde; o inglês The Guardian deu em manchete “milhares marcham pelo impeachment de Bolsonaro”; a Reuters, maior agência de notícias do mundo, registrou “Brasileiros protestam em todo o país contra a resposta do presidente Bolsonaro à covid”; No El País, “Protestos anti-Bolsonaro se impõem nas ruas e reavivam pauta do impeachment”.

Mas o Brasil se pauta é pela mídia nativa. E, assim, o país majoritariamente institucional não se abalou.

A Rede Record cobriu a manifestação dando-lhe o caráter de protesto pelo auxílio emergencial. A emissora de Edir Macedo fez o que a TV Globo, então defensora de sua moribunda ditadura militar, fez na campanha pelas diretas, em 1984, ao tratar manifestação popular em São Paulo por eleições como se fosse comemoração do aniversário da cidade. E, por falar na vênus platinada, comportamento de sempre. Desde outros tempos milicos, passando por Collor e Bolsonaro, nada de promover bandeiras vermelhas. Depois, com a repercussão nas mídias sociais, registro tardio no Jornal Nacional fugindo ao rótulo de omissa.

Dos três impressos nacionais – que vendem menos e menos, mas dão o tom da agenda política, pois representam a oligarquia – dois correram em defesa de seus interesses: não toleram Bolsonaro, mas não vão sacrificá-lo pondo em risco seu despachante de mercado, Paulo Guedes, e as reformas que não têm parada. No domingo 30 de maio, manchete do Estadão tratou de cidades que se reinventam na pandemia. Em O Globo, o PIB foi notícia. A exceção foi a Folha de São Paulo. Embora integrante da direita política e, no processo eleitoral de 2018, indiretamente apoiadora, a exemplo dos outros dois, da eleição de Bolsonaro, noticiou o protesto do dia anterior.

O Brasil forma sua opinião por esses meios. Somos um país de ignorantes, no sentido literal do adjetivo. Ignoramos, desconhecemos.

A oposição a isso não conseguiu em décadas vencer essa ignorância. Nada faz crer que conseguirá. Como bradou a atriz global, “fora extrema esquerda comunista”, seja lá o que a atriz entenda por comunista, ela habitante do Brasil, capitalista desde que existe o capitalismo e que nunca foi outra coisa. Ordeiramente, o país continuará aceitando, sem comoção, políticos e políticas que promovam meio milhão de mortos, famílias nas ruas e as crianças famintas. Néscios nos tornaram.

[1] https://ourworldindata.org/coronavirus/country/brazil

[2] https://brasil.elpais.com/brasil/2021-06-03/bolsonaro-mente-na-tv-sobre-vacina-enquanto-capitais-como-curitiba-ja-vivem-colapso-da-terceira-onda.html

[3] https://www.youtube.com/watch?v=sM-M9nM-XOk&t=2392s – a partir do minuto 39.

[4] https://jornalggn.com.br/coronavirus/ggn-covid-mundo-brasil-responde-por-15-dos-obitos-mundiais/

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