16 de outubro: o calendário de mesa marca como dia mundial da alimentação. A data se presta, diz a Fiocruz, à reflexão quanto ao quadro atual da alimentação. Institutos dizem por aí que mais adequado seria tratar o dia como de reflexão quanto à falta da alimentação para muitos milhões. No Brasil esses milhões são 33, número falso na opinião do indignado banqueiro titular da área econômica do governo, para quem o país vai muito bem, obrigado. Seu chefe, o capitão presidente da república, não menos indignado, expõe, como sempre, seu argumento irrefutável: “já viu alguém pedindo pão na caixa da padaria?”.
Eu já vi no caixa, na porta, no balcão, ao lado das mesinhas, enfim, na padaria inteira, na calçada e no entorno dela, nos bares, restaurantes, semáforos, mas é provável que eu seja exceção. Nas tais instituições que revelam os 33 milhões há certamente infiltrados opositores do capitão.
Minha visão deva estar contaminada, ainda, pelo tour quase diário que faço na cidade de São Paulo, desnecessário dizer a maior do país. Há que se reconhecer que é bela a paisagem, mas deve estar atrapalhando meu julgamento. Meu tour segue, alternadamente, por dois roteiros.
Roteiro 1: partida da Estação Luz, construção do início do século passado, inspirada na Big Ben britânica. Já na Casper Líbero, coladinho a uma das saídas da estação, um cercadinho abrigando muitas famílias. Se o tour se iniciar até às 6 horas, dia amanhecendo, é possível vê-las se acotovelando para o café da manhã junto a figurinhas bem menores – me foge o nome delas, agora – de passinhos curtos, que correm rente ao meio-fio em direção aos contêineres onde se conserva o maná matinal. Esse mesmo cenário – repito, se até às 6 horas; depois desse horário, o café já foi recolhido e as famílias vão às tais padarias – como dizia, esse mesmo cenário observa-se no trecho seguinte do tour, a Av. Ipiranga. Tal logradouro, diz a SPbairros, foi formado a partir do Beco da Fome, local de parada, ainda no século XVIII, de tropeiros (na época, via não asfaltada). Na Ipiranga de hoje, bem perto do cruzamento com a Avenida São João, pedaço imortalizado em Sampa, o número de famílias ao chão, aconchegadas em papelões e, há que se reconhecer, as mais abastadas em barracas, é bem maior, o que, aliás, dificulta a caminhada, obrigando o zigue-zague pela calçada. O roteiro termina na Praça da República, nominada para lembrar o fim do regime monárquico, embora ainda exista rei na terra brasileira. A República abriga tudo o que essa cidade pode abrigar, exceção ao que se instala na Faria Lima, ambiente do rei. Na República, gente no chão, artesanato, fumaça, barracas com ofertas, mais gente no chão, barracas para abrigos, mais gente no chão. Entre a Luz e a República, são 1.300 metros, cumpridos em poucos minutos.
Roteiro 2: vou resumir, para não extrapolar o limite de caracteres deste texto: partida da Praça da Sé, local onde se encontra um tanque cheio d´água, quase uma piscina, propício ao banho dos moradores de lá. Em seguida, Pátio do Colégio, local em que se permite a passagem apenas durante o dia – à noite, é utilizado como dormitório. Kombis são vistas, por vezes, na Praça e no Pátio, todas elas de fornecedores de produtos para a população local. Acho que não cobram nada.
Enfim, superando meu olhar de exceção, saudações pelo dia mundial de alimentação a todos no Brasil, país gigante pela própria natureza.