31 de março de 2021 marcará os 57 anos do golpe de 64. A coisa foi na madrugada de 1º de abril, documentam historiadores, mas golpistas receavam a chacota. Assim, ficou 31 de março. Para um editorialista da Folha de São Paulo, do golpe nasceu a “ditabranda”; para José Dias Toffoli, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, foi um “movimento”; para Jair Bolsonaro, quando deputado, uma “revolução” a ser comemorada, embora lamentasse o fato de não ter “matado uns trinta mil”. Conclusões que exemplificam o quanto essa gente se aproxima.
Tenha a alcunha que tiver, 64 é sinônimo de mortes, exílios, desaparecimentos, valas comuns abrigando a confusão de ossadas, torturadores perdoados pela máxima de que o que passou, passou. Brasileiros, definitivamente, não nos miramos em vizinhos latinos que não esqueceram sua história. Vai ver que é por temos pouca compreensão do castelhano. Em nossos ouvidos soa bem o inglês.
O golpe e a ditadura que dele nasceu são tratados como coisa de militares. Foram, mas não apenas. Segmentos civis compartilharam sua construção e, imposto o regime, alguns de seus patrocinadores até se deleitaram assistindo sessões de tortura, a exemplo de Albert Boilensen, então presidente do grupo Ultra, o da Ultragaz.
A renúncia de Jânio Quadros, homem da direitista União Democrática Nacional (UDN), moveu a oligarquia ao golpe ainda no início dos anos 1960. Entre os instrumentos para tanto, ela criou o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD).
Organizações à época ditas multinacionais, empresários brasileiros e donos de meios de comunicação faziam discretamente desses institutos os formuladores da oposição ao governo João Goulart. Esses grupos não toleravam medidas de Jango voltadas à reforma agrária, distribuição de renda, taxação de lucros, controle da remessa de capital ao exterior, direitos de trabalhadores do campo e da cidade. Assim, por meio do IPES e IBAD formulavam propostas trazidas a público sob o manto técnico, não ideológico, apartidário, embora fossem tais propostas o contrário de tudo isso e se prestassem a ensandecer especialmente a classe média.
Doutrinação geral
René Armand Dreifuss, em “1964: A conquista do Estado” (Editora Vozes, 1987), analisa o período. Relativamente à prática do IPES/IBAD, diz em seu livro, capítulo “Doutrinação Geral”, que “os canais de persuasão e as técnicas mais comumente empregadas compreendiam a divulgação de publicações, palestras, simpósios, conferências de personalidades famosas por meio da imprensa”. Acrescenta que “a elite orgânica do complexo IPES/IBAD também publicava, diretamente ou através de acordo com várias editoras, uma série extensa de trabalhos, incluindo livros, panfletos periódicos, jornais, revistas e folhetos. Saturava o rádio e a televisão com suas mensagens políticas e ideológicas. Os jornais publicavam seus artigos e informações”.
As publicações tinham a assinatura IPES/IBAD? Eventualmente. Dreifuss destaca que “jornalistas profissionais se integravam no esforço geral como ‘manipuladores das notícias’ ”.
O autor lembra, ainda, que o IPES “conseguiu estabelecer um sincronizado assalto à opinião pública” por se relacionar com ou ter entre seus integrantes capitães da imprensa, entre os quais gente dos Diários Associados (Grupo Assis Chateaubriand, líder da mídia dos anos 1960), da Folha de São Paulo (Grupo Octavio Frias), de O Estado de São Paulo (Grupo Mesquita) e de O Globo (grupo Roberto Marinho).
Claro que a fomentação golpista não se resumia a isso. Dinheiro era necessário e ele vinha principalmente de industriais e banqueiros. Não faltou o apoio de fundações internacionais, destacadamente USAID – American Agency for International Development, AIFLD – American Institute for Free Labour Development e CIA – Central Intelligence Agency.
Passado e presente
Grupos de mídia aqui mencionados continuam sendo o que foram, agora com seus filhos, netos, antigos e novos financiadores. Porta-vozes dos interesses da oligarquia e dos privilégios de poucos, com eles o assalto à opinião pública segue. Elegeram o governo que aí está, encenam papel de opositores e de surpreendidos, como se não soubessem de quem e do que se tratava.
Esses grupos querem, efetivamente, preservar o que lhes é mais caro: o modelo econômico de seu interesse. Com fachada de isenção, como se não fossem promotores do país miserável, vão defendendo sob o manto de técnicas suas desejadas reformas tributária e administrativa, a independência do Banco Central, defendem o fim de estatais. Querem a regularização de terras griladas, o livre trânsito de capital e veem intocável a alimentada dívida pública sem contrapartida qualquer.
As reformas, anunciam esses grupos, solucionarão todos os problemas, assim como as reformas trabalhista e da previdência recém-aprovadas e festejadas solucionariam. Seus anúncios traduzem, há que se reconhecer, o monopólio das ideias sem muito esforço no Brasil atual, onde não se enxerga nem sombra de mudanças assemelhadas àquelas defendidas pelo Governo Goulart.
As redes sociais, tão presentes, não impedem que a pauta seja determinada pelos mesmos grupos: Uol (Grupo Folha) e G1 (Globo) são campeões em cliques. Na Televisão, o Jornal Nacional tem metade da audiência de anos atrás, mas ainda assim lidera; Globo News e CNN manipulam com jeito sofisticado. Direita e esquerda repercutem e dão credibilidade ao Datafolha.
Embora a análise de Dreifuss se refira ao golpe de 1964, há quarenta anos o autor historiou, em verdade, o futuro do qual somos contemporâneos.
“1964: A Conquista do Estado” traz por subtítulo “Ação política, poder e golpe de classe”. De fato, um golpe de classe.
O livro está esgotado. É possível encontrar exemplares com páginas amareladas, ranhuras e dobras em sebos virtuais. Vale a leitura. Nas páginas amareladas, a prova de que vivemos o país da mesmice.